Os cinco funerais

Por Milton Camargo
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As razões que provocaram a tragédia foram as mesmas de sempre: a embriaguez provocada pelo caxiri feito com a mandioca fermentada somada a alguma rixa antiga ou desavença provocada por causas banais. O fato foi que Koaimi, um ianomâmi vindo de uma outra região e que vive em Palimi-U, posto onde a MEVA atua há mais de 30 anos, pegou a espingarda que conseguira no garimpo, colocou um cartucho carregado com um pedaço de metal e lascas de pregos, engatilhou a arma, postou-se ao lado de um dos paus de sustentação da casa coletiva, onde mais de quarenta ianomâmis se embriagavam, e esperou que Yiyo (Didjo) se aproximasse. Os gritos e a conversa exaltados foram interrompidos pelo enorme estrondo. Quando a fumaça se dissipou, os gritos de dor e desespero tomaram conta da maloca. Yiyo estava morto! O tiro desferido à queima-roupa atingira os órgãos vitais levando-o à morte instantaneamente. O que se seguiu foi uma cena difícil de imaginar, digna do Inferno de Dante, pois a dor dos familiares, os gritos de desespero e o ódio, somados à embriaguez, tomaram conta da casa coletiva. Koaimi, o assassino, fugiu cambaleante para a selva. Os parentes da vítima não puderam alcançá-lo. A tragédia inesperada levou os familiares de Yiyo a um nível de ódio extremo. Na cultura ianomâmi, a vingança e a retribuição são inevitáveis. O assassino fugira, mas sua família ficara. Entre eles o pequeno Emílio de seis anos, filho de Koaimi, que dormia na rede. Elivan, parente do morto, ensandecido pela dor e pelo desejo de vingança, esfaqueou o menino nas costas. Transcrevo uma parte da carta que recebi do Daniel, nosso missionário em Palimi-u, sobre o atendimento à criança que chegou ao posto às quatro horas da manhã: “...a mãe estava tão bêbeda que quase não conseguia falar. Várias vezes ela se colocou entre mim e a criança, segurando o braço do Emílio onde eu acabara de colocar o soro. Ela ficava tentando chamar a minha atenção para um ferimento menor na mão da criança, enquanto eu tentava cuidar do ferimento nas costas. Quando Emílio morreu, ela demorou a perceber o que havia acontecido. Para mim, a parte mais triste foi a cena que presenciei quando levava o corpo e os familiares para a casa coletiva rio acima. Eu observava o irmãozinho do Emílio, Everaldo, de quatro anos. Ele estava sentado na frente do barco, em completo silêncio. Não chorava, mas olhava repetida e ansiosamente ora para a mãe que chorava desesperada, ora para o corpo do irmão com um olhar angustiado, procurando uma explicação. Os dois eram muito amigos...”
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Nos meus 28 anos de ministério entre os povos indígenas no norte do Brasil, ainda não vi nada mais triste que uma casa ianomâmi em luto. O choro copioso e os lamentos em alta voz de dezenas de indígenas numa casa escura e sempre enfumaçada tornam o ambiente ainda mais triste e chocante.
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Os corpos foram envoltos em esteiras, feitas de madeiras finas e cipós, e pendurados em giraus pelas respectivas famílias. Koaimi ouvia o choro de lamento pelos mortos. Provavelmente alguém o avisara da morte do próprio filho. Segundo Daniel, alguns índios ouviram-no chorando do outro lado do rio, e isso, mais uma vez, suscitou o desejo de vingança contra quem fora responsável pela tragédia. Os parentes de Yiyo se prepararam. Conseguiram uma espingarda, munição e partiram. A morte do pequeno Emílio não fora suficiente para aplacar a necessidade de retribuição. Encontraram o Koaimi não muito distante da maloca. Ele fugira sem levar nada, nem ao menos um facão. Os vingadores aproximaram-se e mais um tiro foi disparado. Koaimi foi atingido na coxa e no abdômen. Gritou e correu. Os vingadores seguiram o rastro de sangue deixado pelo índio ferido, mas não o encontraram. Não é difícil imaginar o desfecho dessa história. Os ferimentos provocados por arma de fogo infeccionam facilmente, especialmente aqui na Amazônia, por causa da umidade e do calor. Sem nenhum medicamento, sem armas e sem rede, Koaimi não resistirá aos ferimentos e seu corpo jamais será encontrado. Será o terceiro funeral. Mas a família de Yiyo ainda não ficou satisfeita. Um irmão de Koaimi, Careca, que vive em Mucajaí, outro posto onde a Meva atua, precisou fugir. Parentes de Yiyo iriam matá-lo.
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O quarto funeral aconteceu em São Paulo. Uma menina, Isabella, um pouco mais velha que o Emilio, foi jogada do alto de um prédio. A polícia ainda procura os assassinos. Yiyo, Emílio, Koaimi, Isabella...famílias choram perdas irreparáveis e definitivas. Você pode imaginar o que o Koaimi sentiu depois de passado o efeito do álcool, sabendo que havia matado um homem de 42 anos e que seu filho morrera como conseqüência do seu ato? Você pode imaginar o que sentiu o pequeno Everaldo vendo o corpo do irmãozinho morto? Pode imaginar a dor de Koaimi provocada pelo ferimento infeccionado, ver suas forças se esvaindo e saber que a morte seria certa? Como entender que um homem criado à imagem e semelhança de Deus consegue esfaquear um menino de seis anos, ou jogar uma menina de um prédio?
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Mas ainda falta um funeral. Mais uma morte. E essa acontece como conseqüência direta das outras quatro. Foi o funeral do Filho de Deus. Um assassinato praticado por todos nós, como conseqüência da nossa maldade. Uma cruz foi erguida e, por minha causa, o próprio Deus encarnado na pessoa de Jesus Cristo pagou um preço altíssimo para que você e eu pudéssemos renascer com a imagem de Deus restaurada em nossa vida, livre do poder e da penalidade do pecado. .
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O Senhor sabia que o inimigo viria somente para roubar, matar e destruir. Os quatro funerais são um exemplo típico da atuação maligna num mundo doente e pervertido, aqui na selva ou aí nas regiões mais desenvolvidas do país; mas é o final do versículo de João 10:10 que mostra o valor infinito do quinto funeral a uma humanidade rebelde e sem esperanças: “mas eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância...”
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É por isso que continuamos aqui. A solução para os problemas dos ianomâmis e de toda a raça humana está na cruz, na promessa de uma vida nova, redimida pelo poder da morte e ressurreição do nosso salvador! Que maravilhosa redenção! Que transformação impressionante! Porque na minha essência eu sei, e como sei, que não sou melhor que os assassinos identificados nessa triste história. O que fez diferença na minha vida foi o quinto funeral. Louvado seja o Senhor!
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Que esse quinto funeral continue transformando sua vida e que a gratidão por esse gesto supremo de amor por alguém que não merecia possa ser cada vez mais importante para você.